Lembro de me levantar da cama na casa da Rua Guaporé de pés descalços, sem encontrar os chinelinhos cor-de-rosa, e ir até a cozinha onde minha mãe estava sentada na cadeira de plástico duro e pés de metal escolhendo feijões.
Coloquei a cabeça entre seus braços e pedi colo, prontamente atendido. Eu me lembro da admiração que tinha por aquela mulher que não era padrão, mas era muito bonita: os grandes olhos azuis, um cego e torto, o outro atento e com pintinhas amarelas. O rosto redondo, com um queixo pequeno, o nariz arrebitadinho bem na ponta e as sobrancelhas arqueadas. O cabelo sempre bem preso num coque bem no alto da cabeça. Aquele colo que era pequenininho, mas que cabia quem quisesse ocupar.
Lembro que nesse dia eu queria bolo de café da manhã, mas tinha acabado. Ela me deu um pão e um ovo, pediu para eu comer sozinha, tirar o miolo do pão e molhar na gema mole, e tomar meu café com leite em silêncio, porque ela precisava se concentrar.
Nunca tinha visto minha mãe chorando, mas naquele dia, onde só estávamos eu e ela em casa, ela desabou. Eu não sabia o que fazer. Não queria mais comer, mas senti que se fizesse qualquer coisa causaria um incômodo. Fiquei quieta e comi em silêncio.
Era falta. Hoje eu acho que sei que era falta, mas podia ser qualquer outra coisa. As dores crônicas. A saudade. O medo. Mas eu acho mesmo que era falta. A saudade dos familiares, da casa cheia como alguns meses antes, a distância enorme que a separava de todos aqueles que ela chamava de lar.
Naquele dia, ela fez um doce de feijão para mim. Aquele que ela tinha escolhido foi para a panela sem tempero, uma parte virou o feijão do dia, a outra o doce. Passava o feijão cozido sozinho na peneira para tirar tudo da casca, amassava bem, juntava com leite, chocolate em pó e açúcar e fogo até virar uma mistura parecida com brigadeiro. Aí juntava o coco fresco e só esperava desgrudar do fundo da panela. Não podia comer quente, dava dor de barriga instantânea. Era o único jeito que eu comia feijão.
Acho que ela teria orgulho do meu feijão de agora, cheio de tempero e que é consumido com voracidade quando coloco na mesa. Ela também ficaria surpresa com esse amor pela cozinha que se manifestou tão tardiamente, e ainda mais pelo comer saboreando o que quer que seja.
Naquele dia, ela me colocou para tomar banho sozinha, mas leu uma história para mim antes de eu dormir no berço que começava a ficar pequeno. Não gostava das histórias de gibi, então pegou um livrinho qualquer, mas acho que a história não era aquela, porque ela não virava as folhas. Ou talvez virasse, porque essas memórias enganam. Ela sentou na beira da cama e leu, me fez um carinho, cobriu minha orelha, que é um daqueles hábitos que eu trago até hoje, e me mandou três beijinhos. Dorme com Deus. Amém.
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