Acordei para tomar uma xícara daquele café diferente que cheira gostoso quando passo no moedor elétrico, evolução do moedor manual que quebrei sem querer. O primeiro passo do despertar com café é o cheiro que sobe quando a água fervendo encontra o pó. Não sou do time que faz um ritual, afinal meus olhos sequer estão totalmente abertos, mas o processo é mecânico e a experiência como um todo é prazerosa, um pequeno deleite matinal.
Sempre fui entusiasta do café da manhã, melhor refeição do dia e mais importante, segundo a sabedoria de minha mãe – e eu raramente discuto com os conselhos dela, porque já passei constrangimento emocional o suficiente questionando seu conhecimento.
Quando minha mãe morreu, 2007, eu não sabia que ela ainda seria tão presente na minha vida. Essas frases, o prazer de cozinhar e comer, o crochê que voltei a amarrar e na paixão pelos livros. Tem também o amor pela música clássica, Bach e o ballet Quebra Nozes. E agora eu era herói e o meu cavalo só falava inglês, que ela cantava e ria do absurdo da brincadeira infantil. Cada vez que meu pai vai parar no hospital pela idade avançada, eu penso também na presença ausente dele na minha vida… As histórias de quando ele era jovem, os jogos de futebol, pescarias e a vivacidade, que felizmente eu ainda posso vivenciar, ainda que agora esses aspectos todos se misturem nas memórias embaralhadas da mente senil.
Sinto saudade de quando ele me acordava cedinho, café na mão, para ir na praia pegar um bichinho pré-histórico que chama “corrupto” que virava uma ótima isca. Tinha que ser na maré bem baixa, andando na beirinha do mar era possível ver os buraquinhos, ele pegava a bomba e puxava, eu pegava o bichinho e colocava no balde com água. Eram alguns km só eu e ele. Meu pai gostava de silêncio e eu aprendi a não falar demais com ele, eram os momentos de prestar atenção apenas no que acontecia ao redor. Tem o Bolero de Ravel. Tem o roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda peão, que meu pai viu ao vivo numa apresentação e me ensinou a amar essa música.
Acho que isso é outra coisa que resgatei na vida nos últimos tempos, faço isso na hora de lavar a louça ou quando vou tomar banho, tiro as distrações e foco ali no barulho da água e deixo os pensamentos me invadirem… Geralmente começo com os problemas, aquele imediatismo de resolver os boletos e os desejos que ficam naquele momento, depois a cabeça começa a relaxar e o barulho da água, do vidro, do tecido começa a trazer lembranças de outros tempos.
A minha vida parece outra vida, dividida em duas. O antes e o depois, uma quebra na linearidade. Eu sou outra pessoa na forma, na mente, no corpo e a vida é a mesma, mas é duas. Quando eu lembro de tudo isso, dos meus pais principalmente, eu era outra e uma outra que eu sinto saudade. Essa nostalgia vem sempre com uma vontade de voltar lá e fazer tudo diferente, valorizar aquilo tudo mais e não dá. O momento presente volta aos poucos e prefiro deixar de lado o que não é bom, dou foco nas coisas de agora que eu vou sentir falta daqui 20 anos: deitar no sofá e fazer maratona de série, jogar tabuleiro, passar tempo de qualidade com o Denis, até o Denis em si, a gratidão que eu sinto por esse relacionamento, a nossa vida de hoje que é o auge em alguns aspectos e é a maior dor em outros, mas que bom ter companhia para passar por isso.
Essas torrentes de pensamento me atormentam quando vêm rápido assim, mas são um refúgio quando olho para o que acontece no mundo. A sociedade do cansaço me cansa também. E nessas lembranças e presentes, o futuro me mostra que eu vou sentir falta de hoje também. Ainda bem.
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Clayci Oliveira
Ai Carol! Sua publicação me fez divagar… não tem sido dias fáceis por aqui também e me pego pensando em momentos e lembranças – algumas doloridas e me esqueço do presente.
Carol Mancini
Sentir saudade não precisa ser ruim, mas não dá para viver ou mudar o passado… As lembranças, por mais doloridas que sejam, também tem o seu porquê na nossa memória. Espero que essa sensação de nostalgia ruim passe por aí, Clayci <3